Platônico

Havia uma ânsia naquele rapaz ao entrar na sala. Uma inquietação que ele sabia muito bem disfarçar com um andar bem ritmado, de passos firmes, direção certa e cabeça erguida. Desde o dia da matrícula, já gostara do ambiente do novo curso: meninas simpáticas e de boa aparência pareciam jorrar pelas portas das salas no hall da recepção. Pôde perceber cinco ou seis delas, além de uma professora, em quem poderia, provavelmente, ter uma motivação a mais para aprimorar o francês. Nunca conseguiu agir de outra forma. Como a um animal, uma força primitiva fazia com que todas as mulheres bonitas lhe magnetizassem. Mas seus arrebatamentos eram muitíssimos controlados; nas feições mais distraídas escondiam-se olhos em chamas, olhos de uma atenção gratuita e um desejo perpétuo.

Na primeira aula, como já se poderia esperar dele, uma moça drenou cada gota de sua atenção. As palavras da professora só precisavam ser ouvidas quando fossem extremamente necessárias para que sua próxima fala fosse correta – ou, ao menos, não soasse ridícula. Só tinha olhos para a moça de cabelos cor de cobre, pele clara e sorriso fácil. Ela era linda em cada mínimo detalhe. E as minúcias foram o deleite do tão observador rapaz por muitas outras aulas. Durante quase cinco semanas, cada gesto, cada palavra, cada cor de sapato, cada amarrar de cabelo foi esquadrinhado, sorvido, apreciado silenciosamente pelo rapaz. A tão bela figura da moça acompanhava seus pensamentos por quase todo o tempo. Levava-a para casa ao final das aulas, e com ela permanecia em pensamentos até a outra, retornando ainda mais apaixonado. E assim crescia o inconfessável amor do rapaz pela moça dos cabelos acobreados. Continuar lendo

Um João comum

Mastigava maquinalmente o pão dormido, não se importando com a mortadela excessivamente condimentada. O braço direito, como um relógio, levada a xícara de café preto à boca de mordida em mordida. Mãos lavadas, dentes escovados, posto o perfume de sempre e abotoados os punhos da camisa, mais uma vez a porta da diminuta quitinete se abria, aos rotineiros dez pras sete.  A face de João não tinha expressão alguma, como se fosse possível aos humanos simplesmente não pensar em nada. Querer adivinhar os pensamentos por trás daquela face seria como tentar imaginar os pensamentos de um carro, de um poste, de uma parede… de qualquer objeto cuja aparência, de tão corriqueira, não expresse absolutamente nada. Era assim que João era: corriqueiro, neutro. Insignificante.

                Ao chegar ao ponto do ônibus, porém, uma completa transformação se operava no homem. Era outro João. Puxava o punho esquerdo da camisa e suspirava, apertando os lábios e balançando a cabeça, como que impaciente. E ninguém sabia do seu hercúleo esforço em parecer um trabalhador atrasado, comum e impaciente, igual a qualquer outro de qualquer manhã normal. A distração de quem tamborila os dedos à espera do transporte era puro fingimento. Cada detalhe ao redor era percebido por João. Cada mínimo movimento da multidão preenchia sua mente: os cadarços coloridos do rapaz no meio-fio; a haste do óculos remendada do velho senhor sentado à esquerda; o cheiro do creme de pentear da estudante que conversava alto à sua frente. Tudo era pormenorizadamente avaliado pelos seus olhos de discrição. Mas João era apenas mais um, talvez o menos significativo, entre todos os outros. Continuar lendo

Título desnecessário

Outro poema de 2009, carinhosamente dedicado à amiga Ana Cecília.

 

 

 

 

 

 

Décimo quinto andar

 

O céu parece mais azul daqui….

Mas tudo será luz daqui a pouco

Assim serei um justo, não um louco

Perdido na vontade de cair.

 

Quero estar morto, cego, mudo, mouco…

Calado e com a calma de um faquir,

No vento, como ave, irei fugir

Que a terra então me traga o último soco.

 

E mesmo sabendo que ainda é cedo

Sem grito mórbido ou olhar de medo

 

Entregarei ao mundo os meus sentidos.

 

 

Poderá, nesse fim, minha consciência

 

 

 

Libertar-se do fardo da existência

 

 

 

 

E abandonar meu corpo em seus gemidos.

 

A sombra que há de ficar

Como se oferecessem seu último e mais primoroso fruto, os canaviais paraibanos fizeram brotar o gênio que representaria, através dos séculos, a grandeza de nosso povo. Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, nascido em 20 de abril de 1884, na sede do Engenho Pau D’Arco, foi angustiado cantor das amarguras existenciais. Através de seus versos, quase sempre carregados de melancolia e pessimismo, esse singularíssimo poeta paraibano elevou a poesia nacional a um patamar de superlativa rutilância.

          Crescido em meio à bucólica paisagem do engenho, às margens do rio Una, Augusto dos Anjos encantou-se muito cedo pelos livros. Porém, se por um lado o contato com a literatura aguçava sua sensibilidade – atributo indispensável a um poeta -, por outro as frias luzes que a ciência lançava sobre os mistérios da existência traziam-lhe angústias, reflexões profundas sobre a efemeridade da matéria. A ideia fixa de que a vida caminha inescapavelmente para o fim sempre foi um componente psíquico do poeta, que se amargurava pela fragilidade humana diante do implacável “Deus-Verme”. De suas cismas filosóficas, muitas destas à sombra preferida de um tamarindo, fizeram-se os mais brilhantes sonetos. E assim, imerso no mundo da introspecção, escravo de um sofrer poético, Augusto imortalizou-se no edificar de suas estrofes.

          O poeta do Pau D’Arco foi um filho afetuoso e devotado, tanto à sua família quanto à sua terra. Mesmo após tornar-se bacharel em Direito no Recife, voltou à Paraíba, preferindo dedicar-se ao magistério e ao jornalismo, atividades que reafirmaram sua natural competência. Foi respeitado professor do Liceu Paraibano, dentre outros educandários, onde aplicava sua notável erudição lecionando as mais diversas matérias. Augusto também foi colaborador dos jornais A União e O Comércio, nos quais muitos de seus mais belos poemas foram divulgados.

          Em 1910, deixando o cargo de professor no Liceu, Augusto viajou para o Rio de Janeiro e lá publicou seu livro único: EU. À época, seus versos “esquisitos” eram apreciados por poucos e ainda mais raros eram aqueles que conseguiam apreender a essência de sua poética. Augusto dos Anjos era, sobretudo, um homem de idéias avançadas, que parecia estar sempre uma década adiante do seu tempo. Apesar de sua predileção pelas formas clássicas – como o tão característico soneto -, o poeta do EU foi adepto de uma linguagem estranha Continuar lendo

Uma resenha

Assis Chateaubriand sempre me soou como um nome conhecido, talvez de alguma nota de rodapé no livro de História, talvez o nome de alguma fundação. Quando participei de um tal “Prêmio Assis Chateaubriand”, acabei descobrindo tratar-se daquele que trouxe a televisão ao Brasil, fundando a TV Tupi. Descobri também ser um dos notáveis concorrentes ao título de Paraibano do Século XX, e muito pouco além disso. Até que, entre um comentário sobre a disregard doctrine e uma consideração sobre os efeitos da comoriência, o professor Rogério Fialho contou algumas passagens pitorescas de uma biografia que andava lendo: Chatô, o rei do Brasil, do jornalista Fernando Morais.

Dias mais tarde, sentindo o prazeroso odor de poeira e mofo de um dos corredores da Biblioteca Central, fui fisgado por um título repetido em várias lombadas. Era a biografia que o atarefado professor andava lendo – e que eu, curioso e menos atarefado, também leria por alguns dias. Dado o volume do livro, considerei que valeria a pena resenhá-lo ao seu fim, o que farei agora, antes de devolvê-lo a sua Babel de bolor e pó.

Chatô, o rei do Brasil, de Fernando Morais

Utilizando o mesmo envolvente estilo narrativo que elevou ao sucesso os anteriores Olga e A Ilha, Fernando Morais nos conduz por entre o emaranhado de episódios históricos, crises familiares e extravagâncias cotidianas que foi a vida de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo. Paraibano de Umbuzeiro, o Chatô – como os mais íntimos ousavam chamá-lo – conseguiu a proeza de ter participado de todos os acontecimentos relevantes, ao menos entre as décadas de 1920 a 1960, da política e do jornalismo brasileiros. E suas participações, diga-se, eram invariavelmente pouco sutis. Continuar lendo

Hoje, mais triste, sem literatura

A literatura como a vejo (leio [aprecio]) hoje me foi apresentada tardiamente. Já com 17 anos, fui posto pelo professor Alessio Toni sob as asas do Colégio Evolução, e lá conheci o literato Marcos Vinícius, que cultuava e transmitia os saberes da sexta arte tal qual uma mística. Seus 45 minutos me absorviam completamente… E por dias meus pensamentos restavam magnetizados por versos de Manuel Bandeira, Vinícius de Moraes, J. C. de Melo Neto e, especialmente, de Augusto dos Anjos.

Ainda aos 17, por fascínio e identificação com a obra desse último poeta, passei a me arriscar, vez por outra, a por algumas rimas no papel. Do pouco que saiu, nada foi de estilo original e tudo denunciou meu pouco traquejo com tão refinado artesanato.

Hoje encontrei aqui, em pastas antigas, um dos que poderia ter compartilhado (a depender do público, até com certo brio) há mais tempo: Continuar lendo

A tecnocracia e o pecado dos justos

Advogados de formação recente deparam-se com dúvidas inquietantes em suas primeiras demandas. “Seria com dois esses a grafia correta de ‘petição’? Como redigir um mandato (sic) de segurança?” Tornar-se-ia impossível citar todas as anedotas relacionadas ao despreparo técnico de uma nova geração de operadores do direito. Mas o que todos esses caricatos exemplos guardam em comum – além da culpa pelas gargalhadas no corredor – é uma forte advertência, esteja ela mais ou menos explícita, ao resultado desastroso de uma má formação acadêmica, fomentada pela flexibilidade dos critérios avaliativos e pela popularização (leia-se proliferação) das faculdades privadas. “Sejam lidos os manuais!” É o imperativo da tecnocracia e o mantra dos bons docentes e discentes.

Mas os – cada vez mais cometidos – erros crassos na prática jurídica encerram em si um viés ainda mais perturbador: evidenciam deficiências na esfera técnica dos recém-formados, gerando, em contrapartida, uma maior – e, às vezes, exagerada – preocupação das boas faculdades com o completo domínio da tecnologia do Direito pelos seus alunos. Fica eclipsado, destarte, um problema menos evidente e não menos preocupante: no esforço em dedicar todo o tempo a assimilar os ensinamentos dos volumosos manuais, acabamos por ter um considerável domínio técnico, mas não aprendemos (ou desaprendemos) a ser justos. Continuar lendo

Gaveta aberta

Este blog não tem pretensões maiores do que as de um arquivo simples. Nele, apenas torno digitais e públicos os textos que considerei dignos de alguns bytes, poupando-os de um final triste e empoeirado no meu armário, na terceira gaveta.

Seria cordial dar boas vindas a algum eventual leitor. Prometo fazê-lo em breve (prometo excepcionalmente cumprir uma promessa).

Até!

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